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Para Esquecer

  Como em um sonho, me vejo, sentada na neve fofa, encostada em um tronco grosso do esqueleto de uma árvore gigantesca; névoa fria a minha volta, estou vestida com uma capa de sarja verde musgo e coberta por uma manta grossa que lembra a pele de um animal, feita de um tecido sintético fofo. Tenho um livro aberto e um lobo manso adormecido ao meu lado.  Aos poucos a visão de mim mesma se confunde com a forma física e duas coisas viram uma só. Tento focar no que estou lendo, existem letras, que formam palavras, que formam frases, mas eu não faço a menor ideia do que está escrito, me sinto confusa, mas meu corpo sabe o que está fazendo ali.  O livro é grosso, de uma encadernação impecável, porém gasta. Faço notas com um pedaço de grafite nos espaços em branco, sublinho, pondero. Sobre o que pondero? O que escrevo?  Sinto frio. Fecho o livro por um instante, coloco ao lado em cima de um pano para não molhar, abraço meus joelhos e os aperto contra meu peito. Tento me esquentar. É gostosa a

Ma Mère

Acordei de um sono raso e inquieto, desses que parecem arrastar a mente por terrenos nebulosos, onde não se dorme de verdade, mas também não se está totalmente desperto. Era como flutuar em águas densas e escuras: metade do corpo submerso, pesado e entorpecido, enquanto a outra metade, desperta e em alerta, buscava instintivamente o ar, lutando para não ser tragada pelas profundezas. Não havia sonhos, disso tenho certeza. Talvez o meu corpo estivesse apenas antecipando uma tempestade interna, uma erupção adormecida à espera de um motivo para despertar. A sensação de que algo estava por vir me envolvia, mas nada havia a fazer. O dia já começava e eu estava presa àquela inquietação sem nome, como se fosse algo que habitava as margens do meu ser. Sentei-me na beira da cama, sentindo o frio do chão sob os pés descalços. O silêncio do quarto era quase opressor. Peguei a moringa na mesa de cabeceira, o vidro fresco ao toque, e servi-me de água, sentindo o líquido gelado descer pela garganta.

Migalhas

 “É triste perceber, como tudo que fica à margem está a mercê das sobras. Das sombras” disse Camille para si mesma, enquanto alimentava com migalhas de pão amanhecido, uma dupla de cães aparvalhados, que lhe fitavam com olhos de dor, de súplica. Tão logo perceberam que não havia mais migalhas tornaram a correr e pular pela praça, provocando um ao outro.  Ela observou a dupla brincar, com um pensamento longe. Tinha de terminar sua dissertação de mestrado e a deadline estava terrivelmente próxima. Mas, Camille estava exausta.  Decidiu dedicar-se à leitura em um banco na praça, ao lado de seu apartamento. Nem isso conseguiu fazer com êxito. Passou mais tempo a fitar os cães do que em se dedicar a leitura.  Algo neles lhe trazia a tona pensamentos aprisionados pelo escapismo nosso de cada dia. Essa vadiagem, essa leveza, a malandragem com a qual conquistaram pedaços de pão. Migalhas, é bem verdade, mas até desse instinto universal por sobrevivência através da alimentação lhe fez pensar.  F

As ideias me fogem à palavra

Ainda ontem, ou talvez em algum desses dias que se mesclam na memória, me peguei recordando um tempo em que viajava, em que o mundo parecia mais vasto e as distâncias, quase infinitas. Lembro-me das vezes em que, por necessidade ou desejo, me deslocava de um continente a outro, atravessando oceanos e fusos horários. Para isso, claro, era preciso enfrentar o ritual inevitável de tomar um avião. Ah, como esse pensamento sempre me angustiou. Não eram as longas horas de espera nos aeroportos, nem a impessoalidade das filas de segurança que mais me incomodavam, mas sim a ideia de estar a milhares de metros de altura, preso em um tubo metálico flutuante, desafiando as leis da natureza. Toda vez que me aproximava da porta do avião, sentia uma leve pressão no peito, uma espécie de desconforto que começava suave e, à medida que os passos me levavam para mais perto da cabine, se intensificava. As luzes brilhantes do aeroporto, os anúncios de voos se confundindo no alto-falante, tudo se tornava u