Ma Mère

Acordei de um sono raso e inquieto, desses que parecem arrastar a mente por terrenos nebulosos, onde não se dorme de verdade, mas também não se está totalmente desperto. Era como flutuar em águas densas e escuras: metade do corpo submerso, pesado e entorpecido, enquanto a outra metade, desperta e em alerta, buscava instintivamente o ar, lutando para não ser tragada pelas profundezas.


Não havia sonhos, disso tenho certeza. Talvez o meu corpo estivesse apenas antecipando uma tempestade interna, uma erupção adormecida à espera de um motivo para despertar. A sensação de que algo estava por vir me envolvia, mas nada havia a fazer. O dia já começava e eu estava presa àquela inquietação sem nome, como se fosse algo que habitava as margens do meu ser.


Sentei-me na beira da cama, sentindo o frio do chão sob os pés descalços. O silêncio do quarto era quase opressor. Peguei a moringa na mesa de cabeceira, o vidro fresco ao toque, e servi-me de água, sentindo o líquido gelado descer pela garganta. Os movimentos eram automáticos, como se meu corpo funcionasse por hábito, buscando uma calma que parecia distante.

Levantei-me lentamente, os olhos vagando pelo quarto, agora banhado por uma luz pálida e fraca. 


Caminhei até a cômoda, as tábuas do chão rangendo sob os meus pés, e busquei as vestes leves de verão, ignorando o peso do outono que já se anunciava lá fora. As folhas secas, sopradas pelo vento, sussurravam promessas de frio, mas eu, como sempre, parecia imune. O frio raramente me alcança. 



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Prefiro o rigor dos invernos à melancolia enfeitada dos verões. Há uma honestidade crua na neve e na névoa, que cobre tudo com seu manto monocromático, apagando cores e formas. Até os raros dias de sol, quando o céu claro e imaculado parece zombar do frio cortante, têm uma beleza austera e irresistível. O ar gélido penetra fundo na pele, despertando os sentidos, enquanto o verão, com suas cores vibrantes e seu calor sufocante, parece entorpecer a alma.


A madrugada ainda envolvia o quarto em escuridão espessa, uma ausência de luz que trazia consigo uma quietude quase pesada. As paredes, silenciosas e frias, pareciam absorver qualquer som. Nem mesmo os primeiros raios do sol ousavam romper aquela paz inquietante. O relógio ao longe marcava a passagem do tempo, cada segundo parecendo arrastar-se, lento demais para voltar a dormir. Sabia que era tarde demais para encontrar o sono novamente.


Levantei-me com relutância, o chão de madeira gelado sob os meus pés nus enviando um calafrio que subia pelas pernas. A troca de roupa foi um gesto mecânico, quase sem vontade, o tecido áspero das vestes de inverno raspando contra a pele, como se me preparasse para enfrentar não apenas o frio, mas uma realidade que não oferecia consolo.


Melhor seria enfrentar a dureza do dia que me aguardava no internato. Lá fora, a luz pálida do amanhecer começava a insinuar-se pelas frestas das cortinas, mas dentro de mim, a escuridão permanecia intacta, como se nada pudesse dissipar aquela sensação de opressão que carregava no peito.



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Desci até o pátio central, onde o ar frio da manhã ainda carregava o peso do silêncio. O chão de pedras gastas sob os meus pés emitia um leve eco a cada passo, enquanto a brisa fresca roçava meu rosto. Sentei-me com as costas encostadas em uma das gigantescas pilastras que adornavam o lugar, o mármore gelado pressionando minhas costas, quase desconfortável, mas oferecendo um apoio sólido em meio àquela vastidão vazia.


Com um gesto furtivo, abri um exemplar que havia roubado da área restrita, o Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant. O peso do livro em minhas mãos parecia contrabalancear o vazio ao meu redor. Disfarcei-o no meio do Antigo Testamento, usando a grossa lombada que carregávamos para a capela todas as manhãs. O couro gasto da bíblia tinha uma textura familiar sob meus dedos, um contraste com as ideias afiadas e densas de Kant que se escondiam em seu miolo.


Não me orgulho de dissecar livros e de dar-lhes a proteção de uma velha guarda, colada desajeitadamente entre as segunda e quarta capas. O papel antigo, quebradiço, resistia aos meus esforços. Mas é o que posso fazer se quero ter algo útil para ler durante as intermináveis liturgias matinais, em que o tempo parece esticar-se de maneira torturante. Cada palavra recitada nos cânticos matinais ecoava como um ruído distante, incapaz de penetrar a barreira de indiferença que eu havia construído.



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Já no pátio central, onde a arquitetura barroca revelava sua grandiosidade através de sombras dramáticas e colunas imponentes, sentei-me com a cabeça ligeiramente reclinada para a leitura. O ar ali parecia mais denso, impregnado de um frio que não era apenas físico, mas que vinha também do ambiente imponente, de uma quietude que se impunha. Decidi que permaneceria ali até o soar dos sinos, o som metálico e agudo que ecoava nos corredores, anunciando o momento de subirmos até a ala norte, onde ficava a capela de Stella Maris.


Era um ritual diário que se repetia incansavelmente, sem nos conceder nem mesmo o descanso prometido no sétimo dia. Subíamos em silêncio, famintas, pois o desjejum só vinha depois das orações matinais. Não importava o quão vazia estivesse minha barriga, o ciclo era imutável.


Em dias comuns, havia também as aulas, mas desde cedo percebi que pouco se aprende com as cátedras, e menos ainda com a catequese. As palavras dos professores pareciam perder-se no ar abafado das salas de aula, desprovidas de qualquer vida ou interesse. A rotina era árida, e o conhecimento que eu buscava, tão distante daquelas pregações, tinha que ser encontrado por conta própria.


A arquitetura do lugar, embora bela, carregava uma opressão silenciosa em sua escuridão, uma espécie de beleza sufocante. Tudo ali era intenso, especialmente as sombras. Era graças a essas sombras que o menor feixe de luz das lamparinas, tremeluzindo nas paredes, parecia arder com a força do sol. A escuridão circundante tornava possível que eu me perdesse por alguns minutos em minha leitura, isolada do peso das obrigações que me aguardavam.


Ali, com a obra de Kant oculta, eu tentava decifrar um mundo onde a razão parecia ser a chave para escapar das amarras do dogma. As palavras de Kant soavam quase como uma rebelião silenciosa contra a ordem que me cercava. Ele desafiava o que poderia ser conhecido apenas pelos sentidos e pela experiência, insistindo que a razão, sozinha, poderia penetrar as profundezas da realidade. Mas naquele lugar, envolta em sombras e preceitos rígidos, a liberdade prometida pela razão parecia uma miragem distante, um lampejo fugaz em meio a um oceano de imposições religiosas.



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Era para este belo recanto católico, com suas fachadas imponentes e crucifixos adornando cada canto, que se dirigiam as mulheres cujas almas clamavam por salvação. Órfãs de destino incerto, bastardas esquecidas, rejeitadas pela sociedade, miseráveis sem outra escolha. Mas, acima de todas, estavam aquelas que carregavam o maior peso: as filhas abastardadas, problemáticas e rebeldes demais para serem exibidas com orgulho pelas famílias de brasões ilustres.


O internato, com suas paredes de pedra fria e corredores longos e ecoantes, parecia projetado para aprisionar, não apenas os corpos, mas as almas. Cada porta fechada era um lembrete silencioso de que ali se esperava obediência, penitência e, acima de tudo, submissão. As janelas, com suas grades finamente trabalhadas, permitiam a entrada da luz, mas não do mundo exterior, mantendo todas nós confinadas, sob o olhar severo de Deus e de seus representantes terrenos.


Diziam que havia uma sala na torre norte, atrás da capela, um lugar de sombras e silêncio onde eram enviadas as doentes da cabeça. Para essas, sussurravam as freiras, não havia salvação possível, pois o demônio residia dentro delas, corroendo suas mentes. Nunca confirmei esse boato, nem precisei. O local era proibido, envolto em um véu de mistério e medo, acessível apenas aos padres, freiras ou às autoridades que ousassem invocar seu poder sobre nós.


A simples menção dessa sala trazia um arrepio discreto, como se o próprio ar ao redor dela fosse diferente, mais denso, carregado com algo invisível, mas palpável. Havia momentos em que eu passava pela capela e sentia, ainda que à distância, o peso daquela ala esquecida, como se as paredes sussurrassem histórias que ninguém ousava contar. E assim, o boato permanecia, uma sombra em meio à rotina, uma lembrança constante de que nem todas podiam ser salvas.



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Algumas das residentes juravam ouvir toda sorte de barulhos estranhos vindos de lá: gritos abafados que pareciam sufocar o silêncio, sussurros quase imperceptíveis, o som distante de maquinários pesados que ninguém sabia descrever, e uivos que, segundo elas, só se intensificavam nas noites de lua cheia. Até o arrastar de correntes, como se almas penadas estivessem acorrentadas naquele lugar esquecido.


Eu, particularmente, nunca ouvi nada. Nem um som, nem uma vibração no ar. Mas desejava, confesso. Toda vez que passava por aquela ala, um ímpeto fervilhava em mim, uma vontade intensa de subir as escadas estreitas e ouvir qualquer coisa – um sussurro, um estalo – ou, quem sabe, sentir um calafrio percorrendo minha espinha. Mas nada. O mais absoluto e impenetrável silêncio reinava, como se aquele canto da torre estivesse isolado de qualquer perturbação. Nem mesmo as aulas de canto, que ecoavam pelas paredes de pedra e muitas vezes quebravam a atmosfera sombria com suas melodias agudas, conseguiam despertar os supostos monstros aprisionados lá dentro. Não para mim, ao menos.


Talvez eu simplesmente não temesse suficientemente os demônios, por não acreditar em tudo o que se dizia. E, acredite, isso era algo que me causava problemas. Especialmente com Clarisse, a residente noviça que se preparava para entregar-se a Cristo e fazer todos os votos. Ela parecia ver no meu ceticismo uma afronta pessoal, como se minha falta de fé fosse uma ameaça ao caminho de sacrifício que ela mesma havia escolhido. Para Clarisse, o silêncio da torre era prova viva de que o mal espreitava, enquanto para mim era apenas uma parte do internato que ninguém ousava explorar.



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Ela não me tinha em boa estima. Seus olhos me seguiam com a precisão de quem possui um dom sobrenatural. Essa santa noviça, certamente, apresentava algum poder xamânico, pois via através dos véus que eu cuidadosamente mantinha erguidos ao redor de mim. Enxergava além da minha escuridão. Não sei como, nem por quê, mas aquilo me desarmava. O olhar dela parecia vasculhar cada sombra minha, buscando algo oculto, um pecado, uma falha, algo que justificasse o tormento que ela tentava me infligir, como se precisasse desesperadamente que eu revelasse uma impureza digna de punição. Talvez, no fundo, fosse o dom dela que precisasse de expiação, pois se revelado, seria ela a ser punida.


Quando criança, eu cedia facilmente às provações divinas, rendendo-me a elas com uma culpa sufocante, que me oprimia como um manto pesado. Era constantemente repreendida por ser “profana” demais, ousando fazer perguntas que ninguém se atrevia a responder. Sempre questionei o silêncio ao meu redor. Por muitos anos, carreguei o peso da culpa pela morte de minha mãe – como se meu nascimento fosse a condenação dela – e ainda mais doloroso, o suposto luto de meu pai, que me enviou para este lugar sombrio e nunca mais olhou para trás. O abandono dele era como uma sombra constante, apertando-me o coração com dedos invisíveis.


Com o passar dos anos, no entanto, aprendi a abraçar a solidão, transformando-a em um abrigo frio, mas seguro. A minha reclusão, que antes era vista como desobediência, com o tempo passou a ser interpretada como um sinal de cura, uma resignação aos desígnios de Deus. Isso apenas alimentava o rancor em Clarisse. Ela sabia, talvez melhor que ninguém, que por trás da minha fácies plácida e pálida residiam as perguntas incômodas da infância, perguntas que eu jamais deixara de fazer. E, o que a irritava ainda mais, as respostas que eu havia encontrado sozinha, sem depender de fé cega ou das doutrinas que ela tanto prezava.



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Durante aquele tempo de tormentas, eu e Clarisse éramos estranhamente próximas. Ela parecia se deleitar em ouvir as minhas "sandices", como ela as chamava, e me observava com aquele olhar fixo, como se estivesse sempre à espera do momento certo para me corrigir. Devota fervorosa, tinha a plena convicção de que sabia todas as respostas que me conduziriam à absolvição pela justiça divina. Ela se considerava uma guia espiritual, ansiosa por salvar uma alma perdida como a minha, sempre pronta a recitar as mesmas fórmulas sagradas que tanto me desconcertavam.


Clarisse era intensamente devota de Nossa Senhora, Maria, mãe de Cristo. Os seus lábios jamais cansavam de repetir os versos de louvor, com uma perfeição quase mecânica, oscilando entre a doçura fervorosa e a monotonia fria. E sabia bem o efeito que aquelas palavras tinham sobre mim. Cada vez que recitava um "Ave Maria", era como se tentasse me lembrar de uma culpa ancestral, algo maior do que eu, uma sombra que eu deveria carregar.


Agora, deixe-me dizer algo que guardo a sete chaves, algo que jamais revelei a ninguém, nem mesmo em minhas horas mais vulneráveis. Eu sou uma das descendentes de Maria, a virgem, se é que não sou, em mim mesma, um pedaço dela. Não uma versão santa e intocada, mas uma herdeira do que foi distorcido ao longo do tempo, fragmentado e romanceado até que se tornasse uma história moldada para controlar e doutrinar sem recorrer à força. Embora, devo admitir, às vezes a força também seja usada. Eu mesma carrego marcas, lembranças de uma infância indomável, em que as correções físicas não eram incomuns. Marcas finas, quase invisíveis agora, mas ainda ardentes na memória, resquícios do açoite disciplinar que tentava me moldar, sem jamais conseguir.


O que contam sobre ela, sobre Maria, e o que dizem sobre mim, está longe da verdade. O que restou são sombras de algo que nunca foi, um mito tecido ao longo dos séculos, fragmentado e adulterado para servir a um propósito maior, que não é o da fé, mas o do controle. Eu carrego a memória desse mito, como se a verdade estivesse gravada em mim, em cada uma das marcas que minha pele suporta, invisíveis ao olho comum, mas ainda assim profundas.



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A narrativa de como tudo aconteceu, ou deixou de acontecer, é apenas uma versão entre tantas outras. Assim como há outras histórias, sendo contadas em algum lugar distante destas muralhas, moldadas por bocas que eu nunca conhecerei. E nenhuma delas é igual. Todas remetem à mesma pessoa, mas sob diferentes domínios, olhares enviesados, fragmentos de uma verdade impossível de reunir. Esse é o dilema de não se poder escrever sobre a própria história: a nossa vida, quando lembrada, é sempre pela voz de outro. E, no caso de Maria – é ainda pior. Sua memória foi devorada por mil línguas e reconstruída de pedaços soltos, cada um com sua própria intenção. Nenhuma versão é completa, nenhuma é verdadeira. Apenas metonímias pobres, frágeis, arruinadas pelo tempo.


Clarisse, claro, tinha o seu interesse particular nessa história. Para ela, o maior prazer estava em me provocar, em ver a minha irritação se acender diante das deturpações e versões tortuosas dessa narrativa sagrada. Ela ansiava que eu contestasse, que eu fosse tomada pela raiva, para que, com sua serenidade hipócrita, pudesse me demonizar aos olhos de todos. Era um jogo sutil, como se ela esperasse me ver escorregar, me descontrolar, para então recitar suas orações piedosas, cheia de graça e pena.


Mas algo curioso acontecia. Quanto mais ela se esforçava para me despir de qualquer dignidade, para me expor, mais ela própria se desnudava diante de mim. Havia um fogo na maneira como seus olhos me fitavam, uma necessidade que transcendia a devoção que tanto alardeava. Clarisse se consumia em seu próprio desejo de ver minha queda, até que a tortura que ela tanto almejava infligir passou a ser minha arma. Cada vez que ela tentava me provocar, eu a observava se despir, camada por camada, sua máscara de santidade começando a rachar. Quanto mais ela tentava me desmontar, mais sua própria fragilidade vinha à tona, e eu, por minha vez, permanecia imóvel, envolta no meu silêncio, deixando-a se perder naquilo que nunca conseguiria confessar nem a si mesma.



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O sol, tímido, começou a despontar no horizonte, banhando o pátio com uma luz fria que mal conseguia penetrar a espessa névoa branca. A umidade no ar se agarrava à pele, fazendo com que tudo ao redor parecesse mais pesado, como se o mundo inteiro ainda se recusasse a despertar. Uma a uma, as internas surgiam da escuridão dos corredores, como sombras sem nome, silenciosas, enfileirando-se com disciplina diante da entrada principal. Esperávamos todas pelo som do sino e pela figura rígida da madre suprema, que surgiria para nos conduzir através de mais um dia "santo". Cada passo nosso era uma repetição monótona do anterior, sem cor, sem variação.


Clarisse, como de costume, era uma das últimas a aparecer no pátio. Seu atraso habitual era uma marca registrada, algo que ela parecia usar como um emblema de superioridade disfarçada. Apenas as desobedientes e as desajustadas surgiam depois dela, e isso parecia alimentar ainda mais sua vaidade. Como sempre, suas bajuladoras estavam lá, prontas para recebê-la com sorrisos exagerados e olhares que mal escondiam a falsidade. Elas se inclinavam levemente em direção a ela, como cúmplices, trocando risinhos suaves e olhares vazios, como um bando de Judas dispostos a trair a si mesmas pela aprovação de uma figura frágil.


Eu me mantinha sentada, as costas repousadas contra o frio da pedra. A névoa ao meu redor abafava o som e tornava o ambiente ainda mais irreal, quase onírico. Tentava, sem muito sucesso, ignorar o olhar de canto de olho que Clarisse lançava em minha direção, furioso e insistente, como se eu fosse o alvo constante de sua cruzada pessoal. Me perguntava, em meio ao torpor do amanhecer, como alguém conseguia acordar tão disposta a iniciar verdadeiras batalhas, cruzadas de ódio disfarçado de fé. O que as motiva? Aonde encontram tanta energia? O simples pensamento de tal disposição já me fazia sentir o peso do pecado da preguiça.


Clarisse, com seu ar de autoproclamada pureza, era o tipo de pessoa que despertava todos os dias como quem se prepara para uma guerra santa, enquanto eu mal conseguia reunir forças para enfrentar as horas vazias que se arrastavam diante de mim. Sua determinação era ao mesmo tempo exaustiva e cômica, uma devoção que me parecia mais uma prisão. E assim, me mantive quieta, encolhida no meu silêncio, enquanto o dia lentamente surgia, trazendo consigo a repetição implacável de sempre.



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O sino ecoou pelas paredes frias do convento, quebrando o silêncio pesado com sua pontualidade implacável: seis horas em ponto. O som metálico reverberava pelo pátio ainda envolto na névoa, e o sol, preguiçoso, mal havia emergido por completo no horizonte. Arrependida de ter saído tão cedo do calor de minha cama, me levantei lentamente, juntando-me à fila que já se formava sob o olhar atento de ma mère. Clarisse, como sempre, caminhava colada à freira, como se o simples ato de estar próxima a ela pudesse infundir-lhe o glamour e a santidade que tanto almejava. Em sua mente, eu imaginava, já se via ali, no futuro, guiando seu próprio rebanho com a mesma autoridade rígida.

Caminhei mecanicamente, como se meus pés mal tocassem o chão frio de pedra. Minhas reflexões vagavam enquanto percorríamos o familiar caminho até a capela. Ponderava sobre histórias, suas versões, seus contadores. Clarisse, com seu fervor, me parecia alguém que um dia poderia ser canonizada, uma santa criada pela devoção cega de outros. Era quase cômico pensar que alguém como ela, tão obcecada por ser vista, pudesse um dia ser venerada como mártir ou santa.

Mas, ao mesmo tempo, eu me perguntava: que mal teria isso? No grande teatro da vida, quem conta as histórias, e quem se torna o herói ou o vilão, é irrelevante em sua maior parte. Uma vida canonizada, outras esquecidas. Era tudo a mesma trama, contada de novo e de novo, sob novos nomes e faces. Falsas histórias sobre pessoas contadas por outras pessoas... que impacto real poderiam ter no vasto universo em que flutuamos por um tempo tão breve?

Enquanto o silêncio de nossas passadas ecoava nos corredores, concluí que, à primeira vista, nenhum mal haveria. Afinal, as histórias que inventamos sobre os outros raramente mudam o curso das estrelas. Mas, em algum lugar dentro de mim, uma dúvida insidiosa surgiu. Um sussurro que não podia ser ignorado. E se essas histórias, mesmo pequenas e frágeis, criassem rachaduras nas fundações que mantêm nosso mundo coeso? E se, no fim, fossem as mentiras que contamos, e não as verdades, que moldassem o curso do tempo?

Ou seria eu apenas vítima das minhas próprias ilusões, perdida na névoa de uma manhã qualquer?


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By - Cardoso, M.



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