Ma Mère

Despertei de um sono raso e incômodo, desses que a gente sabe que não está nem bem dormindo, tão pouco desperta. Flutuando em águas escuras, metade do corpo repousando inerte debaixo d’água e a outra metade inconscientemente buscando o ar necessário para todo resto não afundar. 

Eu não estive sonhando, estou certa que não, talvez meu corpo anunciava, o prelúdio de algum tipo de cólera prestes à erupção. Seja como for, não havia muito a ser feito. Já estava desperta e inquieta com coisa alguma.

Sentei-me na beira da cama, peguei a moringa em cima da mesa de cabeceira, me servi de água fresca e fui calmamente até a cômoda buscar as vestes de verão. 

O outono já se anunciava lá fora, mas eu não sinto frio tão facilmente. Prefiro o rigor dos invernos a melancolia enfeitada dos verões! Neve e névoa deixando tudo monocromático, até mesmo os abençoados dias de sol, ainda mais frios que os de chuva, de uma beleza irresistível. 

Ainda era madrugada, a escuridão de meu quarto permanecia intocada pelos primeiros raios de sol do dia, mas já era tarde demais para tornar a dormir. Melhor foi me trocar e enfrentar a dura realidade daquele internato.

Desci até o pátio central e aguardei sentada com as costas repousando em uma das gigantescas pilastras que embelezavam o lugar. Abri um exemplar, que roubei da área restrita, chamado Crítico da Razão Pura de Immanuel Kant, coloquei no miolo do antigo testamento (aproveitando sua lombada) que carregávamos para a capela todas as manhãs. 

Não me orgulho de dissecar livros e dar-lhes de presente uma velha guarda colada em suas segunda e quarta capas, mas é o que da para fazer se deseja ter algo útil para ler durante as intermináveis liturgias matinais. 

Por lá, com a cabeça ligeiramente reclinada para leitura, decidi que ficaria até o soar dos sinos que anunciavam o momento em que subiríamos até a ala norte onde ficava a capela de Stella Maris. Era um ritual diário que não nos poupava nem mesmo o descanso do sétimo dia. Acontecia sempre antes do desjejum, não importa o quão faminta você esteja. 

Em dias regulares tínhamos aulas também, mas desde cedo decidi que não se aprende muita coisa com a cátedra, menos ainda com a catequese.

Apesar da arquitetura barroca ser tão dramática em sua escuridão tudo ali era muito bonito, especialmente as sombras. Graças as sombras que o menor feixe de luz das lamparinas ardia com a força do sol, permitindo assim que pudesse me perder em minha leitura por alguns minutos. 

Era para este belo recanto católico que se encaminhavam as mulheres cujas almas precisavam de salvação. Órfãs, bastardas, rejeitadas, miseráveis e, é claro, as mais precisadas - as filhas abastardas problemáticas, rebeldes demais para serem apresentadas por suas famílias com brasões de importância.

Dizem que existe uma sala na torre norte, atrás da capela, que acolhe também as doentes da cabeça. Parece que essas não há salvação pois o demônio reside dentro. Nunca confirmei esse boato, o local é proibido,  apenas autorizado aos padres, freiras ou alguma autoridades que assim se anuncie. 

Algumas das residentes juram ouvir todo tipo de barulhos estranhos vindos de lá. Gritos, sussurros, maquinários, uivos em noite de lua cheia e até mesmo o arrastar de correntes.

Eu particularmente nunca ouvi coisa alguma. Desejava, entretanto. Toda vez que passava por lá sentia uma tórrida vontade de subir, de ouvir algo ou sentir um arrepio. Mas nada. O mais absoluto nada acontecia, nem mesmo nos dias de aulas de canto, que quebravam o silêncio mórbido, despertavam os monstros aprisionados na torre. Não para meu prazer, ao menos.

Talvez eu não temia suficientemente os demônios, por não acreditar em tudo que se dizia, e acredite isso era algo que me trazia problemas, especialmente com Clarisse, uma residente noviça que preparava para se entregar a Cristo e fazer todos os votos. 

Ela não me tinha em boa estima. 

Certamente essa Santa noviça apresentava algum dom xamã, pois via através dos meus véus. Enxergava além da minha escuridão. Não sabia como, nem por que, não lidava bem com esse dom. Fazia de tudo para me atormentar, na tentativa de que eu revelasse uma impureza digna de punição. Talvez se revelasse seu dom, seria ela a ser punida. 

Quando criança eu cedia facilmente as provações divinas e era constantemente repreendida por ser tão profana. Eu fazia perguntas demais para uma criança e durante muitos anos carreguei a culpa da morte de minha mãe somada ao, suposto, luto de meu pai, que me enfornou lá e nunca mais voltou. 

Com o passar dos anos me acostumei a solidão e minha reclusão acabou sendo vista como um sinal de cura e isso fazia crescer o rancor em Clarice, ela sabia que dentro dessa fácies plácida e pálida residiam todas as perguntas da infância, e muito pior, todas as respostas que busquei sozinha. 

Durante esse tempo de tormentas eu e ela éramos bastante próximas, ela sentia prazer em ouvir as minhas sandices pois, devota que era, sabia todas as respostas que me levariam à absolvição da justiça divina.

Ela se dizia muito devota de Nossa Senhora, Maria, mãe de Cristo. Não cansava de repetir os versos de louvor que aprendera. Sabia perfeitamente bem que eram os que outrora mais me desconcertavam.

Deixe-me dizer algo que escondo a sete chaves.

Eu sou uma das descendentes de Maria, a virgem, se é que não sou em mim mesma um pedaço dela. E tudo que contam aqui sobre ela e sobre mim não trata-se da  verdade, apenas de uma fragmentação atemporal romanceada para ludibriar e doutrinar sem ter de executar à força… bem, as vezes a força também é usada, eu mesma tenho marcas de uma infância malcriada. 

A narrativa de como tudo aconteceu, ou deixou de acontecer, é apenas uma versão da história, assim como certamente em outro lugar longe dessas muralhas outras histórias são ditas. E nenhuma é igual, apenas remetem a mesma pessoa, sob diferentes domínios e perspectivas.

Esse é o problema de não se saber escrever sobre nossa própria história. A nossa vida, quando lembrada, é lembrada por outra pessoa… ou no caso de Maria, de várias outras pessoas. Cada uma com seu interesse acerca dela, com ou sem intenção de intervir na realidade, não passam de metonímias fajutas. 

Para Clarice, seu interesse nessa história era justamente que eu me irritasse com as versões deturpadas e a contestasse. Assim ela conseguiria, com um ar piegas de graça e pena, me demonizar aos olhos de todos. Mas ela se consumia tanto que a tortura passou de suas para as minhas mãos. Quanto mais ela tentava me despir, mais se despia. 

O sol não tardou a nascer e com a névoa branca trouxe as internas ao pátio, uma a uma, se enfileirando frente à entrada principal a espera do sino e da madre suprema que nos conduziria para mais um santo dia. 

Clarisse era sempre uma das últimas a aparecer no pátio, perdendo apenas para as que viviam em desobediência. Para suprir seu egocentrismo velado, suas bajuladoras a recebiam, com sorrisos reverentes e olhares falsos como judas. 

Me mantive ali sentada, tentando não sentir seu olhar de canto de olho a me fitar furiosamente. Como alguém consegue acordar tão disposta a encarar verdadeiras cruzadas? O que as motiva? Eu cometo o pecado da preguiça só de pensar. 

O sino tocou precisamente as seis horas, antes mesmo do preguiçoso sol surgir completamente no horizonte. Arrependida de ter saído tão cedo da cama segui para a fila guiada por ma mère, Clarisse praticamente colada na santa mulher tentando roubar um pouco do glamour da freira para si própria, afinal um dia seria ela ali encaminhando seu rebanho. 

Percorri todo caminho ponderando sobre história, estória e seus contadores. Pensei que Clarisse um dia poderia ser canonizada e ter fiéis seguidores, mas afinal, que mal teria isso? 

Conclui que mal nenhum faria alguns seguidores fanáticos acreditarem em falsas histórias contadas acerca de pessoas, por outras pessoas. Isso não seria capaz de criar um impacto no macro universo que flutuamos por tão curto tempo. 

Ou seria? 

- Cardoso, M.



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