As ideias me fogem à palavra
Ainda ontem, ou talvez em algum desses dias que se mesclam na memória, me peguei recordando um tempo em que viajava, em que o mundo parecia mais vasto e as distâncias, quase infinitas. Lembro-me das vezes em que, por necessidade ou desejo, me deslocava de um continente a outro, atravessando oceanos e fusos horários. Para isso, claro, era preciso enfrentar o ritual inevitável de tomar um avião. Ah, como esse pensamento sempre me angustiou. Não eram as longas horas de espera nos aeroportos, nem a impessoalidade das filas de segurança que mais me incomodavam, mas sim a ideia de estar a milhares de metros de altura, preso em um tubo metálico flutuante, desafiando as leis da natureza.
Toda vez que me aproximava da porta do avião, sentia uma leve pressão no peito, uma espécie de desconforto que começava suave e, à medida que os passos me levavam para mais perto da cabine, se intensificava. As luzes brilhantes do aeroporto, os anúncios de voos se confundindo no alto-falante, tudo se tornava um pano de fundo indistinto, abafado pela inquietação crescente dentro de mim. Quando finalmente tomava o assento, os corredores se estreitavam ao meu redor e a respiração se tornava mais curta. Era sempre o mesmo pensamento sombrio que me invadia: **será aqui, nesse lugar, que meu destino se cumprirá?**
Apertava o cinto de segurança com as mãos trêmulas, como se aquele gesto pudesse me proteger de algo mais grandioso e incontrolável. Olhava ao redor, buscando conforto nos rostos dos outros passageiros, a maioria tranquila, alguns rindo baixinho ou imersos em seus livros e fones de ouvido. Me perguntava como eles conseguiam. Para mim, cada vibração do motor, cada solavanco discreto durante a decolagem, era um prenúncio de que algo terrível poderia acontecer. O rugido dos motores se misturava ao pulsar acelerado do meu coração, e eu só conseguia pensar: **e se esse fosse o lugar do meu sepultamento iminente?**
Tentava afastar a imagem da mente, mas ela sempre voltava, vívida, insistente. Ali, no alto, suspenso entre céu e terra, eu sentia uma fragilidade absurda, como se a vida inteira fosse um fio tênue prestes a se romper. E, no entanto, não havia escolha. Sempre havia um destino à minha espera, uma terra estrangeira que eu precisava alcançar, e assim, apesar do medo, eu continuava a embarcar. E assim se seguiam as viagens, um misto de fascínio e temor, onde cada chegada era uma vitória silenciosa sobre aquela sensação inquietante que me perseguia, sempre.
Se pudesse, pegaria o carro e dirigiria de São Paulo até Barcelona. Atravessaria estradas intermináveis, cortando fronteiras e paisagens, vendo o mundo mudar devagar, de uma cidade para outra, de um continente ao próximo. Passaria por desertos, florestas, montanhas e campos. Sentiria o vento mudar, o ar se transformar de úmido para seco, de quente para fresco, enquanto cruzava terras desconhecidas. Ou, se não fosse possível ir de carro, talvez cavalgasse, como faziam os antigos viajantes. Lentamente, com o ritmo do mundo a me acompanhar, sentiria o solo sob os cascos do cavalo, cada quilômetro conquistado de forma lenta e intencional, uma jornada que me colocaria em contato com cada pedaço da estrada.
Mas a realidade é outra. No mundo em que vivemos, o avião é o meio mais viável. Uma necessidade imposta pela urgência, pela vida que não permite pausas. Há sempre um compromisso, um prazo, uma reunião à espera do outro lado do oceano. A viagem, que poderia ser uma aventura por si só, acaba se tornando apenas um intervalo entre dois momentos. A cada decolagem, sinto que perco algo dessa experiência, como se o ato de voar fosse uma espécie de atalho que rouba a verdadeira essência do deslocamento. No entanto, sei que não posso esperar. O tempo corre, impiedoso, e exige que estejamos em todos os lugares ao mesmo tempo, sem dar espaço para o luxo da demora.
Conheço, porém, quem possa esperar. Gente que não se deixa levar pela urgência das coisas, que sabe que o tempo tem seu próprio ritmo e não precisa ser acelerado. Essas pessoas escolhem viajar de barco, cruzando os oceanos com a serenidade de quem sabe apreciar o caminho tanto quanto o destino. E não falo de barcos comuns, mas de luxuosos navios, verdadeiras cidades flutuantes onde o tempo parece suspenso. Navios cujas jornadas são cheias de entretenimento interminável – cassinos, teatros, restaurantes requintados, piscinas cintilantes sob o sol, festas que se prolongam noite adentro. Para esses viajantes, a viagem não é um meio, mas um fim em si mesma. Eles flutuam pelas águas calmas, sem pressa, deixando que os dias se arrastem em um ritmo quase esquecido no mundo moderno. Para eles, a travessia é a verdadeira experiência, e o destino, uma consequência distante que pode esperar.
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E eu, com meu eterno desejo de atravessar o mundo com os pés no chão, me pergunto como seria essa vida sem pressa. Talvez, um dia, deixe de lado a urgência do avião e experimente o sabor da espera, deixando o tempo fluir com a calma que ele merece..
Mas eu não sou dos que podem esperar. Ultimamente, nem dos que podem viajar.
Fato está, de que quando piso em uma aeronave, sinto cheiro do último suspiro. E era justamente sobre isso que estava a pensar qualquer dia desses.
Como conciliar dois sentimentos mutuamente? O deleite de viajar, de conhecer novos lugares, novos caminhos, novas formas de ser e estar no mundo e o medo irreparável de que a morte no trajeto me impediria de tal transgressão.
Não sei explicar como. Mas consigo. Talvez as possibilidades não exploradas gritem colocando o medo em seu lugar de pequeneza.
Mas não era sobre isso que recordava-me das viagens que fiz. E sim sobre o que os vivos contam sobre morrer de avião. Nunca conheci ninguém que tenha morrido de avião, que pudesse diminuir minha angústia de entrar em um. Uma palavra de conforto: não se sente nada, tudo ocorre em um instante.
Os vivos nos contam isso. Esses que não morreram de avião, revelam que é a melhor forma de morrer. Pois nem se percebe, quando percebe já se está morto. Ora, mas o que sabem os vivos sobre morrer?
Em pesquisa sádica, recordo-me de na espera da sala de embarque, ter calculado em média quanto tempo demoraria a queda. A melhor resposta que encontrei foi que em quatro minutos tudo se acabaria.
Fui tomada de imediata agonia.
Quatro minutos inteiros caindo para morrer? Não me parece pouco tempo. Digo, não há muito o que fazer em quatro minutos. Tem gente que toma banho em cinco, ou dizem. Cinco minutos de um banho quente em uma noite fria de inverno me parece pouco. Cinco minutos de um banho frio em uma noite fria de inverno devem ser uma eternidade.
Uma queda livre por quatro minutos inteiros, sem paraquedas, me parece ser um banho frio no inverno. Talvez meu coração colapse antes disso, ou meu cérebro exploda com a desaceleração… seria então apenas minutos de um corpo inerte, já morto, lançado para a morte em definição.
Mas quão fascinante é não é mesmo? A elasticidade do tempo!? Acelerar e desacelerar. Para os amantes da ficção seria como viver no Matrix. Não no conceito do matrix, mas na possível desaceleração frente ao projétil lançado. É bonito de ver.
Imperfeito em sua perfeição. O tempo. O desejo de possuir o tempo, enquanto ele te escorre por entre os dedos, como os relógios de Salvador Dalí em A Persistência da Memória.
Memória essa que me ocorreu ainda ontem, ou qualquer dia desses que se precedeu, sobre um tempo em que viajava.
Cardoso, M.
(Texto sem revisão)
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