Para Esquecer

 Como em um sonho, me vejo, sentada na neve fofa, encostada em um tronco grosso do esqueleto de uma árvore gigantesca; névoa fria a minha volta, estou vestida com uma capa de sarja verde musgo e coberta por uma manta grossa que lembra a pele de um animal, feita de um tecido sintético fofo.

Tenho um livro aberto e um lobo manso adormecido ao meu lado. 

Aos poucos a visão de mim mesma se confunde com a forma física e duas coisas viram uma só. Tento focar no que estou lendo, existem letras, que formam palavras, que formam frases, mas eu não faço a menor ideia do que está escrito, me sinto confusa, mas meu corpo sabe o que está fazendo ali. 


O livro é grosso, de uma encadernação impecável, porém gasta. Faço notas com um pedaço de grafite nos espaços em branco, sublinho, pondero. Sobre o que pondero? O que escrevo? 


Sinto frio. Fecho o livro por um instante, coloco ao lado em cima de um pano para não molhar, abraço meus joelhos e os aperto contra meu peito. Tento me esquentar. É gostosa a sensação do calor de meu peito e abdômen tocando minha coxa, causa um arrepio, como se um fio estivesse conduzindo energia em slow motion.

Sinto que já esperei demais, olho a minha volta. Estou em frente a um mosteiro, não sei como sei que é um, mas estou a poucos metros de seus limites. 


O lugar é uma mistura de creme e cinza, concreto e metal, algumas pedras igualmente cinzas é muito branco (neve) ao redor. 


Eis que surge Li. 

Nos conhecemos. 

Não sei bem como, nem porque.

Ele sabe que me sinto confusa dentro de minha certeza, sua expressão é tímida de quem da oi para uma longa amizade de alguém cuja memória foi perdida. 


Ele também é uma mistura de creme e cinza. Salvo su capa de sarja branca e seu manto pesado marrom. 


Li carrega em sua cintura uma adaga média e traz em seus ombros uma sacola reforçada com arco e flecha. 

Eu ainda estou confusa - onde estamos? Eu pergunto. Ele me responde com um sorriso largo faz cócegas na minha barriga e corre me provocando a correr atrás dele. 


Começa a brincadeira de pique-esconde, o lobo nos segue feliz, como que aguardando por aquele momento, Li corre para cerca de um quilômetro fora do perímetro do mosteiro e de repente estamos entre pedras cinzas, ovais, lisas e altas, fincadas como lápides na terra, formando um grande círculo ao redor de uma fonte de água vazia.


Passamos algum tempo ali apenas contemplando a beleza do lugar. Ele me oferece maçãs que trazia na sacola junto as lanças.


Devoramos algumas delas, sentados cada um apoiado em uma das pedras, separados pela distância de menos de um semicírculo.

Percebo que o sol não mais está alto, ainda não é noite, mas sei que é chegada a hora de partir. 

Insisto em perguntar onde estamos e o que faço ali. Ele fita o chão e diz que estou ali para me esquecer. 

  • Me esquecer do que?
  • De lembrar - diz ele com um sorriso tímido.
  • E por que quero esquecer de lembrar?

Ele decide encerrar o assunto, junta seus pertences, me ajuda com os meus e antes de eu ir partir,  com uma labareda faz atear fogo no centro da fonte em meio às pedras. Logo o fogo começou a queimar alto, eu acho curioso pois não imagino ver fogo em uma fonte d’água. 


Ao partir Li me presenteia com uma ave de caça e um instrumento para que ela repouse em meu braço quando cansada de seu voo ou se quisesse ficar próxima a mim.

Nos abraçamos e ele diz adeus.


Paro por alguns instantes para organizar meus pensamentos.

  • Li, para onde estou indo?
  • De volta.
  • Para casa?
  • Sim.
  • Onde moro?
  • Longe daqui, a caminhada é longa, você descerá até o vale, tome aqui mais maçãs - e ele tira mais maçãs da sacola, como um mágico tira pombas de uma cartola - em seguida, pare, alimente-se, beba água da nascente do rio, depois desça sua encosta até avista o mar. 
  • Isso levará dias, Li.
  • Levará apenas o necessário para que retorne.
  • Para casa?
  • Sim.
  • Na praia.
  • Isso.
  • Como saberei onde é minha casa?
  • Você saberá. Adeus Gree.

E com isso dou início a minha partida. Sigo a risca às instituições dadas por Li. O caminho é como um sonho, a medida que a neve desaparece tons de vida e cores se consolidam. Meus amigos de jornada, o lobo e a ave me confortam. Pois a caminhada é longo e sinto-me fadigada, porém ao mesmo tempo que aumenta o cansaço o vale passa a surgir aos poucos a minha frente com a belíssima nascente de águas cristalinas.


Bebo da água, lavo meu rosto, minhas mãos, meus pés e paro para contemplar minha imagem no espelho d’água. 

  • Sou eu mesma.

Penso sem querer pensar. Quem mais seria? Sinto vontade de permanecer ali. Meus companheiros de viagem também, mas resgato forças para levantar e seguir até o mar.


Realmente não demora muito tempo em trilha até que eu comece a ouvir o barulho das ondas quebrando na areia. Sinto que me aproximo. O som aumenta, o cheiro da maresia confunde com a náusea da caminhada, como se tivesse passado o dia velejando e quando em terra firme ainda sentisse o DNA do mar.


Aperto o passo quero chegar logo, mesmo sem saber onde e de fato, nada faz sentido, porém tudo que tenho é a certeza de que devo retornar. Não tarda até que conchas se quebrem nas solas de minha botas. Adoro a sensação, o barulho e a impressão de estar sendo secretamente negligente por quebrar algo tão puro com uma sola tão suja.


Aos pouco mata e areia se confundem. Um rochedo alto a minha esquerda guia o rio de encontro ao oceano, é uma das coisas mais lindas que já vi. O tempo está mais quente e úmido, tem cheiro de sal, tem cheiro da areia e tem gosto do mar. 

O sol está se pondo naquele mar, e eu não quero perder o espetáculo.


Me abrigo embaixo de uma árvore com copa larga. O lobo senta ao meu lado, olhar atento à linha de seu horizonte. A ave sobrevoa a área planando mais que batendo suas asas, lentamente vejo aquela enorme bola de fogo mergulhar no mar, minuto a minuto, como se demorasse para que toda a água do oceano pudesse apagar aquela luz. Quando o último raio de fogo ilumina o céu, caio no sono.


O despertador toca, já são 05:30. Levanto da cama sem pressa. Lavo o rosto. Escovo os dentes. Visto roupas de ginástica e desço para a academia do prédio. Retorno, levo Kippa para passear no quarteirão. Noto que uma ave de rapina parece me seguir. Subo para o apartamento. Rego as plantas. Medito. Tomo café e com ele ganho fé para encarar mais um dia. 


Cardoso, M.

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