Migalhas

 “É triste perceber, como tudo que fica à margem está a mercê das sobras. Das sombras” disse Camille para si mesma, enquanto alimentava com migalhas de pão amanhecido, uma dupla de cães aparvalhados, que lhe fitavam com olhos de dor, de súplica. Tão logo perceberam que não havia mais migalhas tornaram a correr e pular pela praça, provocando um ao outro. 

Ela observou a dupla brincar, com um pensamento longe. Tinha de terminar sua dissertação de mestrado e a deadline estava terrivelmente próxima. Mas, Camille estava exausta. 

Decidiu dedicar-se à leitura em um banco na praça, ao lado de seu apartamento. Nem isso conseguiu fazer com êxito. Passou mais tempo a fitar os cães do que em se dedicar a leitura. 

Algo neles lhe trazia a tona pensamentos aprisionados pelo escapismo nosso de cada dia. Essa vadiagem, essa leveza, a malandragem com a qual conquistaram pedaços de pão. Migalhas, é bem verdade, mas até desse instinto universal por sobrevivência através da alimentação lhe fez pensar. 

Foi apenas quando a dona dos cães apareceu, saindo do Monoprix com algumas sacolas, e gritando seus nomes para que obedientemente a seguissem, que Camille teve um corte na profusão de pensamentos desordeiros. 

Os cães bateram em retirada atrás da dona. Dona. A liberdade e vadiagem dos cães já não a invejava tanto mais… eles também tinham a quem se subordinar. 

Obviamente, não lhes cobrava laudas, mas não viviam a correr por aí o dia todo. Se vivessem, certamente seriam considerados cães vadios, de rua, e a estes a liberdade custa a exclusão. De afeto, de saúde, de comida, de roupas em um inverno rigoroso, de um lar. 

Camille se incomodou com a ideia de que em algum lugar cães poderiam viver sem o mínimo. Comer, vestir e morar. Cães. Vivendo das migalhas, com sorte, se ainda souberem trapacear um coração desprevenido. 

Ela pensou em sua própria vida. Em quantas vezes ela não pensou em desistir. Porém resistia. Insistia. O medo de se tornar um cão vadio a assombrava. Não era herdeira de coisa alguma, tão pouco queria ver seus pais mortos para vender um apartamento, um carro e um violão. Vivia ela de migalhas? De forma alguma. Ela tinha afeto, de saúde, de comida, de roupas em um inverno rigoroso, um lar…

Mas e se desistisse de tudo? Se decidisse morar no interior, viver no campo, ver o tempo passar lento, sem pressa pra nada, sem deadline. Mas com que dinheiro? Precisa de dinheiro para abdicar da vida turbulenta. 

Exceto quem nada tem. Estes precisam das migalhas. Sem uma revolução daqueles que tudo produzem (inclusive dissertações) visível, nem mesmo a milhões de anos luz, dentro de uma política social, as demandas diárias de uma luta pela sobrevivência será eternamente pauta do discurso de qualquer “representante do povo”, sem absolutamente nenhuma intenção de mudar nada. Apenas continuar a consumir-nos até a morte e dar migalhas àqueles que estão as margens até mesmo da exploração. 

“É como se um representante da associação dos cães vadios lhes dissesse: amigos, nunca mais passaremos fome, de hoje em diante, fica decretado que todos seremos contemplados com migalhas de pães amanhecidos todos os dias” pensou Camille, e assim imaginava uma legião de cães vadios, felizes, uivando ao luar. “Mal sabem eles, que se entrassem em bando rosnando e ladrando dentro do mercado, comeriam toda sorte de carnes. Mas eles temem os mercados. Conhecidos próximos já foram assassinados cruelmente por passar sorrindo próximo a porta de um” - e assim concluiu que estavam certos. Quando se é um cão vadio, é prudente ficar longe dos mercados.

Desistindo de sequer abrir seu livro, Camille retornou ao apartamento, voltou para seu notebook e sua dissertação. Deadline. 


Cardoso, M.




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