Entre Ondas e Ecos
Capítulo 1: O Escolhido
Na nova cidade, com ruas que cheiravam a maresia e promessas veladas, Nairda Ascomo ainda não sabia que aquele dia, como tantos outros, carregaria as sementes de uma mudança irrevogável. Sentada em seu pequeno consultório, onde o silêncio era uma ferramenta de trabalho, ela sentia o eco do conflito que começava a se formar.
Aos 40 anos, Nairda havia construído uma vida sólida. Neurologista respeitada e psicanalista por paixão, ela habitava o limiar entre a ciência do cérebro e os mistérios da mente. Em sua mesa, os diários antigos de pacientes conviviam com as edições desgastadas de Lacan. Mas, naquela manhã, não eram os mistérios alheios que inquietavam sua mente — era o seu próprio vazio.
Os últimos meses tinham sido marcados por uma sequência de mensagens enigmáticas vindas de um número desconhecido. Eram textos curtos, quase poéticos, mas carregados de um simbolismo perturbador:
“Você já se perguntou o que está sacrificando para seguir o caminho que escolheu?”
“Há coisas que o cérebro entende, mas que o coração nunca perdoa.”
Nairda tentava ignorá-los, mas cada nova mensagem parecia coincidir com algum momento em que sua própria vida parecia fora de equilíbrio. Ela tinha a impressão de que aquele número desconhecido sabia mais sobre ela do que deveria, como se alguém estivesse tentando expor algo que ela preferia enterrar.
Naquele dia, a mensagem chegou enquanto ela revisava relatórios no computador:
“O que te impede de crescer também é o que te faz rebelde. A decisão está próxima.”
O toque do celular foi breve, mas suficiente para desviar sua atenção. Ela leu a mensagem, o coração acelerado, e se perguntou novamente quem estava por trás disso. Amigos próximos? Algum paciente insatisfeito? Alguém do passado que ela não conseguia lembrar?
A resposta parecia estar em um plano mais profundo. Havia meses em que Nairda sentia que sua vida criativa e emocional estavam se fechando. Entre consultas e palestras, entre os diagnósticos de doenças desmielinizantes e as sessões de psicanálise, ela havia perdido o fio condutor que dava sentido ao que fazia.
Naquela noite, depois de sair do consultório, ela decidiu caminhar pela orla da cidade, um hábito que raramente praticava. A luz dos postes refletia nas ondas tranquilas do mar, e Nairda, pela primeira vez em meses, sentiu-se desconectada do peso que carregava.
Enquanto caminhava, foi interrompida por uma figura familiar que não via há anos. Era Alice, sua melhor amiga dos tempos de faculdade, uma presença que carregava tanto conforto quanto dor.
— Nairda? — A voz de Alice era hesitante, mas carregava uma familiaridade que a fez parar. — Eu sabia que te encontraria aqui algum dia.
O encontro não foi acidental. Alice segurava uma carta dobrada, como se carregasse um segredo que pesava demais para ser guardado sozinha.
— Eu tenho algo que você precisa ver — disse Alice, entregando o envelope a Nairda.
A carta era escrita em sua própria caligrafia, mas Nairda não se lembrava de tê-la escrito.
“As escolhas que fizemos nos trouxeram até aqui. Mas, às vezes, para crescer, é preciso trair quem achávamos que éramos.”
Ao ler aquelas palavras, Nairda percebeu que estava à beira de uma transformação que não poderia evitar. A luta entre o que ela era e o que queria se tornar finalmente alcançara sua superfície. E, naquele momento, ela soube que não estava apenas enfrentando as mensagens anônimas ou as pessoas que ressurgiam do passado — estava enfrentando a si mesma.
A escolha estava próxima, e Nairda não sabia se estava pronta para fazê-la.
By Mariana Cardoso
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