Entre os dedos

Adriana Sacomã, psicanalista de 40 anos, não esperava que a mudança de apartamento fosse mais do que uma reorganização prática de sua vida. Mas, entre caixas de livros cuidadosamente etiquetadas e móveis desmontados, uma caixa menor, enterrada no fundo de um armário, se destacou. Era simples, marcada pela passagem do tempo, com uma camada de poeira que parecia protegê-la como um artefato há muito esquecido. Aquela caixa guardava não apenas objetos, mas um pedaço da vida que Adriana não se lembrava de ter deixado para trás.


Ao abrir a tampa, o cheiro de papel envelhecido a envolveu, transportando-a a outros tempos. Lá dentro, encontrou uma coleção de cartas que nunca enviou. As folhas amareladas contavam histórias de amores não correspondidos, amizades interrompidas e confissões que, na época, pareceram urgentes, mas que nunca chegaram ao destino. Algumas estavam dobradas com um cuidado quase cerimonial; outras, amassadas e rasuradas, refletiam a pressa ou o desespero de quem não sabia como expressar tudo o que sentia. Ao lado delas, pequenos diários, cuidadosamente datados, revelavam memórias que remontavam à sua infância e à época da faculdade de medicina, quando o futuro era uma promessa incerta e os caminhos ainda não haviam sido traçados.


Adriana se deu conta, enquanto folheava aquelas páginas, de que havia se desconectado de partes essenciais de si mesma. A rotina clínica, os anos de análise do inconsciente dos outros, haviam silenciado suas próprias questões e ansiedades. A redescoberta daqueles fragmentos a fez perceber que o passado, por mais distante que parecesse, ainda pulsava ali, em cada linha escrita, aguardando o momento de ser revisto, compreendido e, talvez, finalmente libertado.


Edt.


Ela segurou uma das cartas entre os dedos e, por um instante, lembrou-se de um trecho que havia lido recentemente: “em vez de servido de suporte para cartas na tenra infância, quando não havia medo das palavras…”. Ali, entre aquelas cartas não enviadas, residia um tempo em que Adriana ainda não temia suas próprias palavras, quando escrever era libertar-se, sem medo do julgamento ou da incompreensão.


Sentou-se no chão, o peso da caixa agora dentro dela. Lendo os fragmentos dos diários, percebeu o quanto havia mudado, mas também o quanto permanecia intacto. Em cada página, perguntas inacabadas ecoavam como fantasmas: e se eu tivesse dito isso? E se tivesse feito aquilo? Era como se a jovem que escreveu aquelas palavras estivesse esperando uma resposta que nunca veio.


Ao abrir uma última carta, sentiu um calafrio. Não se lembrava de tê-la escrito. Era endereçada a si mesma, mas com uma clareza de pensamento que parecia além de sua idade na época. A pergunta final a desarmou: “Qual o - e se - que você escreveria agora?” Adriana fechou os olhos, a resposta queimando nas bordas de sua consciência.


Por que aquelas palavras, antes tão livres, haviam se tornado prisioneiras do tempo? As dúvidas que ela carregava durante toda a vida pareciam, naquele momento, simples bilhetes da sorte, como: previsões que nunca se concretizaram, mas sempre estiveram ali, esperando para serem lidas.


Adriana sorriu, um sorriso triste, mas cheio de resolução. Talvez fosse hora de responder a essas cartas.


By,

Mariana Cardoso.

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