Um Conto, um ponto e Reticências

 Lina, aos míseros 27 anos, vivia uma existência marcada por uma sensação de incompletude, algo que a corroía de dentro para fora. O número de suas primaveras, embora para muitos ainda fosse sinônimo de juventude, trazia consigo o peso de expectativas não realizadas. Para ela, era como se estivesse presa em uma pausa interminável entre o que deveria ser e o que de fato era. Como uma folha em branco, que carrega dentro de si todos os desenhos do mundo, Lina sabia que a liberdade de tantas possibilidades não era leve. Pelo contrário, era um fardo. A vastidão do desconhecido a deixava paralisada, e cada escolha que deixava de fazer parecia um risco de perder algo essencial, uma oportunidade de se transformar naquilo que ainda não compreendia.

Nunca, em toda sua trajetória, algo lhe causou tanta angústia quanto encarar o vazio de uma página em branco. Crescera ouvindo sobre o potencial, sobre o que poderia vir a ser, mas quanto mais o tempo passava, mais sentia que a promessa de infinitas possibilidades a sufocava. Como se cada folha em branco fosse uma metonímia cruel para sua própria vida, um lembrete constante de que, embora tivesse tudo à sua disposição, faltava algo fundamental. Lina não sabia o quê, mas estava ciente da ausência.

O vazio que a acompanhava era sutil, mas inescapável. Uma lacuna que, à primeira vista, parecia pequena, mas, a cada passo que dava, expandia-se silenciosamente, como uma sombra projetada pela luz que nunca alcançava. Havia momentos em que Lina conseguia ignorar a sensação, quando se perdia em suas rotinas diárias ou nas distrações oferecidas pela modernidade. Mas à noite, quando o silêncio a envolvia, essa sombra crescia. Estava sempre lá, uma presença invisível e densa, preenchendo os espaços entre seus pensamentos e emoções, lembrando-a de que, apesar de tudo o que havia vivido, de todas as experiências que colecionara, havia um buraco que ela não sabia como fechar.

As paredes de seu pequeno apartamento, adornadas com livros e fotografias de viagens, contavam histórias de uma vida aparentemente plena, mas cada objeto era uma tentativa de preencher parte do que faltava, não uma celebração de quem era. Ela havia se rodeado de símbolos, de experiências e conquistas, na esperança de que eles a preenchessem, mas, no fundo, sabia que não passavam de máscaras para o crescente vazio.

Em uma daquelas noites que pareciam destinadas a passar despercebidas, um evento organizado por antigos colegas da época de cursinho, chegou para ludibriar a própria vida, regada a uma mistura bombástica de desgosto e álcool. O local escolhido era um bar acolhedor, porém barulhento demais. Ela havia ido por pura formalidade, como que cumprindo uma obrigação com seu passado, sem esperar grandes surpresas ou emoções. O lugar estava decorado com luzes amareladas que criavam uma atmosfera intimista, quase melancólica. O som de risadas e copos tilintando preenchia o ambiente, misturando-se com conversas superficiais sobre os caminhos que cada um havia seguido desde aqueles dias de tensão e expectativas de futuro.

Foi no meio daquele turbilhão de vozes e lembranças que Lina viu Joana. Ela estava encostada em uma das mesinhas de madeira desgastada, um sorriso despreocupado nos lábios, como se fosse dona de toda a energia ao redor. Joana era a mesma mulher vibrante que Lina conhecia anos atrás, mas havia algo diferente nela naquela noite. A confiança que sempre a envolvia parecia, de alguma forma, deslocada, como se fosse uma fachada prestes a desmoronar. Seus gestos exagerados, a risada um pouco alta demais e o brilho inquieto nos olhos faziam Lina desconfiar que havia algo por trás daquela exuberância. Algo profundo e mal resolvido.

Inicialmente, Lina não prestou muita atenção. Estava distraída, tentando se reconectar com o fluxo de conversas nostálgicas que flutuavam ao seu redor. Mas o destino, sempre caprichoso, fez com que as duas fossem parar lado a lado em uma mesa mais afastada, enquanto os demais amigos se dispersavam. Foi então que uma conversa casual se iniciou, sobre os velhos tempos, as pressões do vestibular, e de repente, como quem tropeça em uma pedra oculta no caminho, Joana desmoronou.

O que começou como uma troca de risadas nervosas e lembranças felizes transformou-se rapidamente em um colapso emocional. Joana, entre soluços que pareciam vir de algum lugar profundo e mal tratado, começou a falar sobre Alice, sua ex-namorada. O nome surgiu de maneira abrupta, como se não pudesse mais ser contido, e com ele veio uma torrente de palavras doloridas. Lina, que não esperava nada além de uma noite tranquila, foi pega completamente desprevenida. A vulnerabilidade de Joana a deixou sem saber como agir, como se estivesse em meio a uma tempestade emocional que não era sua, mas que de alguma forma a tocava.

Havia algo na maneira como Joana falava de Alice que despertou a curiosidade de Lina. Entre os soluços e o desespero, havia um amor latente, ainda pulsante, mas também uma amargura que parecia corroer Joana por dentro. Lina sentiu, de forma quase tangível, o peso daquele relacionamento interrompido. O que antes era uma vontade de sair correndo, de fugir daquele momento desconfortável, foi se transformando. A narrativa fragmentada de Joana, entre frases cortadas e olhos marejados, despertou em Lina uma mistura estranha de empatia e desconcerto.

Havia uma identidade estranha naquele amor perdido que Lina não conseguia nomear, mas que a tocava em algum lugar profundo. Era como se as palavras de Joana carregassem uma dor que transcendia o próprio relacionamento, algo maior do que a separação entre duas pessoas. Talvez fosse a universalidade do sentimento de perda, de frustração por algo que não se pode mais alcançar. Ou talvez fosse a maneira como Joana falava de Alice — com uma intensidade que ia além do amor ou do ódio, uma espécie de devoção ferida que despertou algo em Lina. Um carinho inesperado, misturado com a amarga compreensão de que certas dores são inesquecíveis.

O lugar continuava seu curso caótico ao redor delas, mas Lina estava presa naquele pequeno universo de lágrimas e lembranças, onde as palavras de Joana pareciam flutuar no ar pesado e denso. E ali, naquele instante, Lina sentiu que o vazio que a acompanhava poderia, de alguma forma, ser empático a tudo aquilo. Como se a lacuna que carregava fosse ecoada na dor de Joana.

O peso da própria existência, nem sempre tão sutil, implacável, havia obscurecido aquele dia turbulento em que Joana desabou na sua frente. O choque emocional, misturado à necessidade de autopreservação, levou Lina a enterrar o incidente em algum canto esquecido de sua mente. Ela seguiu com sua vida da maneira como sempre fazia: mergulhada em seus afazeres, nas tarefas cotidianas, nos momentos de isolamento que, paradoxalmente, traziam tanto alívio quanto sufoco. Lina tinha o hábito de evitar o que não conseguia compreender, de afastar as emoções que a abalavam, e assim, a noite com Joana se tornou um borrão distante.

Poucas semanas depois, em um dia comum, algo a puxou de volta para aquele vórtice. Lina estava em uma livraria no centro da cidade, perto da universidade, um lugar que sempre considerou como seu refúgio particular. A fachada discreta, quase imperceptível entre os prédios ao redor, escondia um interior digno de um Off Broadway, forrado de estantes de madeira, que destilavam, perigosas, o cheiro familiar de papel antigo. As poucas luminárias de querosene criavam uma atmosfera barroca, um contraste marcante com o caos urbano nouveau que vibrava la fora.

Era o tipo de lugar onde Lina se sentia à vontade, longe dos olhares intrusivos, em paz consigo mesma. Havia algo na disposição das mesas afastadas, na calma pairando no ar, que fazia com que a livraria se tornasse uma extensão de seu próprio ser. Lá no fundo do estabelecimento havia uma pequena cafeteria, com cadeiras acolchoadas e poucas janelas amplas que deixavam a luz do sol se derramar preguiçosamente pelo chão mosaico de madeira, era um pequeno santuário. Ali, o tempo parecia desacelerar, permitindo que Lina se perdesse em livros, pensamentos e, ocasionalmente, nos contornos suaves da espuma de um cappuccino.

Naquele dia, Lina estava folheando distraidamente um livro de capa dura quando ouviu um riso abafado que a fez levantar os olhos. Foi nesse momento que a viu: Alice. A princípio, Lina não registrou quem ela era; apenas notou a presença de uma mulher que parecia dominar o espaço ao seu redor com uma inquietude quase magnética. Ela estava de pé próxima ao balcão, seus dedos deslizavam suavemente sobre as lombadas dos livros deixados na bancada, por leitores preguiçosos, como quem procura algo específico, mas sem pressa. Seus gestos eram precisos, sua postura serena, e havia um ar enigmático ao redor dela que pedia a atenção de Lina.

Foi só quando Alice se virou para pedir uma recomendação ao atendente que Lina a reconheceu. Era a mesma Alice que Joana havia descrito com tanto fervor e dor naquela noite no bar. Lina sentiu seu estômago revirar, como se o ar tivesse subitamente se tornado mais denso. A livraria, que até então era um lugar seguro, quase sagrado, parecia agora invadida por algo novo, algo que não pertencia a ela. E, no entanto, Lina não conseguiu desviar o olhar, afinal Alice estava plenamente confortável ali, como se fosse tão assídua quanto Lina, se não mais. Todos as chamam pelo nome, ela fazia graça com os atendentes e fregueses do local. Como Lina nunca havia notado aquela presença antes?

Havia algo em Alice que transcendia as palavras de Joana. Ela era ao mesmo tempo ordinária e extraordinária, o tipo de pessoa que você não espera encontrar em um dia qualquer, mas cuja presença ressoa quando a percebe. Seu rosto, meio iluminado, apenas pela luz que vinha das janelas, tinha uma expressão despreocupada, como se nada naquele momento pudesse perturbá-la. Lina, no entanto, sentiu um desconforto crescente. A sensação de que aquele espaço, aquele refúgio tão íntimo, não era mais exclusivamente seu, incomodava-a de uma maneira que ela não conseguia explicar. Ver Alice, mesmo sem uma palavra trocada, já mexia com algo dentro dela.

Alice, alheia à tempestade emocional que havia despertado, pegou um livro da prateleira e se dirigiu calmamente a uma das mesas afastadas. Pediu um café, sentou-se, e abriu o livro como se o mundo ao redor não existisse. Lina, por sua vez, ficou parada, observando à distância, sem saber se deveria se aproximar ou se retirar silenciosamente. Ela sabia que aquele encontro não era coincidência, ou era? Também sabia que estava prestes a entrar em um território desconhecido.

O evento apocalíptico aconteceu, justamente, em um dia em que Lina tentava escapar da monotonia de sua rotina. A livraria, que se esforçava em não se esforçar e o aroma doce do café recém-passado, era um refúgio perfeito para dias cinzentos, desses que os raios do sol entrelaçam as nuvens. Lina, fugindo dos, agora, olhares curiosos de Alice, que parecia ter notado que estava sendo observada, havia se mudado para uma das mesas mais  isoladas, com um livro aberto e seu cappuccino ainda quente, tentando se perder nas páginas. A luz suave do entardecer filtrava-se cada vez mais fraca pelas janelas, criando um ambiente desses de filme de mistério.

Foi então que Alice inadvertidamente, oblíqua e deliberada, marchou até a mesa de Lina, sem se desviar, sem titubear. Sua chegada não foi marcada por barulho ou alarde; foi mais como uma brisa fresca em um dia abafado. Seus passos eram silenciosos e sua presença quase etérea. Lina levantou os olhos do livro e imediatamente se deparou com um par de olhos profundos e hipnotizantes. Alice tinha uma beleza que transcendeu as descrições. Seus olhos, pequenos e escuros, tinham um brilho que parecia esconder mundos e mistérios. Cada movimento seu era calculado com uma graça sutil, e sua boca, cheia e expressiva, parecia guardar palavras e sentimentos que poderiam derreter qualquer resistência.

Lina a observava, intrigada a forma audaciosa como a garota se portava. A poucos passos da mesa em que estava sentada, o barista interrompeu Alice para jogar conversa fora. O rapaz estava visivelmente embriagado pela beleza da moça e mal conseguia esconder seu encantamento. Havia algo na maneira como Alice movia os lábios ao falar com seu amigo, na cadência suave de sua voz, que parecia estar em perfeita harmonia com o universo. A leveza com que ela se movia, fez Lina sentir uma curiosidade crescente, uma atração inexplicável e inevitável.

A energia entre as duas se manifestou quando Alice, com um café na mão, dispensou o barista e findou sua marcha sentando-se à mesa de Lina. Ela, incapaz de desviar o olhar, sentiu um calor inesperado subir pelo corpo. Observava Alice, incrédula, folhear um livro, sem tirar os olhos de Lina, seus dedos longos e elegantes tocando as páginas com uma delicadeza que parecia tão íntima que Lina desejou ser aquele livro, mesmo sabendo que era tocado despretensiosamente, sem interesse algum no enredo. Cada gesto de Alice era uma promessa não dita, uma intriga que ardia na pele.

Era um momento carregado de tensão, um silêncio palpável que parecia ser uma conversa não falada. Lina sentiu um turbilhão de emoções — uma mistura de desejo, curiosidade e uma excitação que a fazia sentir-se viva de uma maneira que não conseguia explicar. A atmosfera ao redor delas parecia vibrar com uma energia não resolvida, uma conexão inexplicável que desafiava a lógica.

A conversa que se seguiu foi um jogo de sutilidades e subtextos, um intercâmbio de olhares e palavras carregadas de significados ocultos. Subterfúgios. Alice falou com uma precisão cirúrgica que parecia fazer o ambiente ao redor delas desaparecer. A cada palavra, a cada sorriso sutil, a tensão entre elas se aprofundava, criando um espaço íntimo que ninguém mais parecia perceber.

O desejo que Lina sentia era mais do que físico; era uma atração emocional e intelectual, uma necessidade de descobrir o que era Alice e o que era inventado. A maneira como Alice falava, a forma como seus olhos escondiam segredos que só pertenciam a si, mais ninguém, tudo isso despertava em Lina um desejo não apenas de estar perto dela, mas de se aprofundar na complexidade que ela representava. E assim, sem que nenhuma de suas palavras ou gestos fossem explicitamente eróticos, a interação entre elas carregava um flerte velado, desejo que pairava no ar como uma promessa de descobertas ainda por vir.

Quando finalmente se despediram, o toque das mãos de Alice na mão de Lina foi breve, mas eletricamente carregado. O contato fugaz deixou Lina com um sentimento de antecipação e uma nova compreensão do que poderia estar por vir. Alice era tudo o que Lina havia imaginado e muito mais — um enigma que prometia explorar e talvez revelar os segredos que ela mesma havia escondido por tanto tempo. E assim, com a partida de Alice, Lina ficou com a sensação de que o que havia começado era apenas o prelúdio de uma conexão que desafiaria suas expectativas e mudaria sua vida de maneiras irreparáveis.

Conforme os meses passavam, Lina se viu consumida por uma paixão que, aos poucos, se transformava em uma prisão emocional. O sentimento por Alice crescia dentro dela de maneira incontrolável, silencioso como uma maré que vai subindo sem aviso, até inundar todos os cantos de sua vida. Esse trágico encontro entre Lua e Mar, o mar entorpecido e cego por sua musa, não percebe que ela morre afogada, e para o findar do seu juízo, ele presencia a cena todos os dias de toda lunação. 

A cada telefonema, a melodia falada de Alice a envolvia, trazendo uma mistura de alegria e dor. A cada mensagem trocada, Lina se pegava sorrindo, mas esse sorriso vinha acompanhado de uma sensação amarga, como se estivesse mastigando vidro. Cada encontro, cada troca de olhares, fazia o coração de Lina acelerar, ao mesmo tempo em que uma corrente fria e implacável cortava fundo, penetrando até sua alma. 

Era um sofrimento doce, quase viciante, mas também cruel. O amor não correspondido se tornava insuportável e tentador. Havia momentos em que Lina se entregava a essas sensações, como quem mergulha de olhos fechados em águas profundas e desconhecidas. Ela revivia cada instante perto de Alice, cada gesto, cada palavra, armazenando tudo na memória como se fossem tesouros. Mas esses tesouros eram feitos de espinhos, e a cada vez que Lina os tocava, sangrava por dentro. Cada sorriso de Alice era uma promessa não cumprida, e cada lágrima de Lina à noite, sozinha, era uma gota de um amor que se derramava em vão.

Alice, por sua vez, permanecia presa às sombras de seu passado com Joana. Havia uma melancolia nos olhos de Alice, uma espécie de saudade que Lina reconhecia, mas que a afastava daquilo que mais desejava. Alice, sem querer ou talvez sem perceber, tratava Lina com uma ternura que era quase cruel. Via nela uma amiga fiel, uma confidente que estava sempre ali para ouvir, para apoiar, mas nada além disso, exceto nas noites frias em que desejava deixar de existir como par. Para Alice, Lina era um porto seguro, uma presença constante, uma alma gentil para se ancorar nos dias difíceis e um corpo quente e submisso quando necessário, mesmo que sempre seguido de arrependimento. E era justamente essa proximidade sem profundidade que dilacerava Lina.

Sabia que, para Alice, ela nunca seria mais do que uma amiga, ou qualquer outra coisa assim. Alice falava sobre suas lembranças com Joana, sobre os momentos felizes e as mágoas que ainda carregava, sem perceber o que essas conversas dilaceravam Lina. A cada menção a Joana, era como se ela fosse empurrada para fora do mundo de Alice, relegada a ser uma testemunha daquilo que não poderia ter. Mas, mesmo assim, Lina não conseguia deixar de se arrebentar de amor e de ódio por Alice.

O amor que sentia era avassalador, mas o ódio vinha na mesma proporção. Há quem pense que o ódio é o contrário do amor, mas não é… é seu complemento, a indiferença, essa sim, era a salvação. 

Havia noites em que Lina se trancava em seu quarto, deitada na cama, abraçando o travesseiro com força, como se isso pudesse abafar a dor. Ela se odiava por amar tanto alguém que jamais a enxergaria da forma como desejava ser vista. Odiava-se por esperar respostas que nunca viriam, por desejar toques que nunca sentiria, por sonhar com beijos tão frios e sem sentido, que lhes eram dados meio que por piedade, meio que por brincadeira.

Era como um vício do qual ela não conseguia se libertar. A presença de Alice era sua ruína e sua salvação, e Lina se encontrava em uma espiral que a consumia lentamente. Ela se arrebentava, dia após dia, entre o desejo de se libertar dessa paixão não correspondida e a incapacidade de viver sem ela. O emaranhado de Alice era uma força que a dilacerava e, ao mesmo tempo, a mantinha de pé, um paradoxo que Lina não conseguia, nem queria, resolver.

Aquela rejeição a atingia como um golpe no flanco, mas não era dor física, e sim algo mais profundo e devastador, que sacudiu as fundações de quem Lina acreditava ser. Era como se, de repente, todas as rachaduras invisíveis que existiam dentro dela tivessem se tornado visíveis, expondo uma fragilidade que ela passara anos negando. O amor não correspondido por Alice era apenas o gatilho, a porta de entrada para um abismo emocional que ela havia cuidadosamente evitado por muito tempo. Agora, não havia mais como escapar. Não de si mesma.

Nas madrugadas solitárias, quando o silêncio da cidade parecia amplificar seus pensamentos, Lina se via confrontando essas partes obscuras de si mesma. A escuridão do quarto era espessa, quase sufocante, e as horas se arrastavam enquanto ela revirava na cama, incapaz de encontrar descanso. "Afinal, um buraco tampado ainda é um buraco?" A pergunta ecoava em sua mente repetidamente, como um mantra doloroso. Ela sabia que estava tentando preencher algo em seu interior, algo que sempre estivera lá, mesmo antes de Alice, mas que agora, parecia escapar de seus poros.

O vazio que a consumia não era apenas a ausência de Alice. Esse sentimento ia além do amor não correspondido. Era como se aquele buraco, aquela lacuna que ela sentia no peito, tivesse raízes mais profundas. Naqueles momentos de insônia, Lina se perguntava se já havia, em algum momento, sentido-se completa. Era possível que esse vazio tivesse sempre feito parte dela, algo que ela havia escondido sob camadas de distrações e autoengano? O que ela realmente buscava não era apenas o amor de Alice, mas algo muito mais essencial. Algo que ela nem sabia nomear.

No fundo, Lina sabia. Sabia que o que doía não era apenas o fato de Alice não amá-la. Aquilo era apenas a superfície. O amor não correspondido era um sintoma, uma manifestação de uma solidão muito mais antiga, um desajuste que ela carregava consigo desde sempre. Não era apenas sobre Alice, mas sobre o sentimento constante de não pertencimento, de ser uma estrangeira em sua própria vida. Havia um abismo entre o que Lina mostrava ao mundo e o que realmente sentia. E, agora, naquele quarto escuro, sem a distração de olhares ou conversas, esse abismo se revelava.

O desamparo era uma sombra que pairava sobre ela, algo que a seguia silenciosamente e que, em noites como aquelas, se manifestava com toda sua força. Ela sempre soubera, em algum nível, que havia algo quebrado dentro dela. Mas nunca tivera coragem de confrontar isso. A rejeição forçou-a a encarar essa verdade, por mais dolorosa que fosse. E, nesse confronto, Lina sentia-se exposta, vulnerável, como se estivesse despida diante de si mesma. O buraco, afinal, sempre estivera lá. E agora, sem a ilusão de preenchê-lo com o amor de outra pessoa, ela precisava encontrar uma forma de lidar com essa ausência, com essa incompletude. Era devastador, esmagador, mas também, talvez, a única verdade que restava.

O espelho, antes um mero objeto de vidro, transformara-se em um confidente silencioso, um portal íntimo onde Lina mergulhava em busca de respostas. Diante daquele reflexo, algo sutilmente começou a se revelar. A imagem que ela projetava, meticulosamente construída ao longo de tantos anos, já não correspondia àquela que o espelho lhe devolvia. Ali, diante de seus próprios olhos, a figura que habitava o vidro era ao mesmo tempo familiar e estranha. Lina se via tentar moldar-se numa mulher confiante, segura de cada movimento, ensaiando posturas e gestos que a sustentassem perante o mundo. Em um momento, ela era uma tempestade dramática — os olhos inflamados de tantas lágrimas derramadas, o rosto tomado por uma expressão que oscilava entre a desolação e a fúria contida. Em outro, aplicava camadas de batom vermelho como uma máscara de coragem, preparando-se para sair e encarar o que viesse, ensaiando falas e diálogos que jamais ousaria pronunciar em voz alta. 

A performance era ensaiada, aperfeiçoada, repetida até se tornar quase natural. Mas atrás da superfície polida, além daquele reflexo enganador, uma realidade mais sombria pulsava. Dentro dela, além da fachada, existia um poço sem fundo de loucura contida. Um espaço profundo e caótico onde seus medos mais ancestrais se escondiam, suas inseguranças afloravam em formas indefiníveis, e seus desejos reprimidos se agitavam, sufocados pela necessidade de controle. Era um caos prestes a transbordar, sempre à beira de romper a delicada ilusão que construíra para si mesma. Transbordando.

Foi em uma dessas noites solitárias, sob a luz suave e trêmula do abajur, que Lina se deparou com a verdade refletida no espelho: sua incessante busca por Alice era, na verdade, uma busca por si mesma. Havia um cansaço profundo em seus olhos, um peso que não se desfazia. Ela estava exausta. Não apenas fisicamente, mas de uma forma que transcendia o corpo e enraizava-se em sua alma. Estava cansada dos jogos sociais que jogava sem querer, das máscaras que os outros usavam e das que ela mesma criava, cansada de correr atrás de promessas vazias, de sonhos que se esvaíam como areia entre os dedos. Alice, a figura etérea que ela tanto idealizava, era a personificação de algo maior — o desejo de pertencimento, de ser aceita plenamente, de encontrar um lugar onde pudesse existir em sua verdade, sem o temor constante de olhares julgadores. Mas, no fundo, Lina sabia que Alice jamais poderia lhe oferecer aquilo que ela ansiava. O que ela procurava era algo muito mais íntimo, algo que não se encontrava no outro, mas que residia dentro dela mesma, esperando para ser descoberto.

Saber que algo não é o que parece muitas vezes não basta para romper as ilusões que criamos, não é verdade? É como se a mente, presa em seus próprios labirintos, se recusasse a enxergar o óbvio até que fosse tarde demais. No caso de Lina, foi preciso um brutal "a corda, Alice" para que finalmente percebesse o quanto estava afundada no poço que ela mesma cavara, ou, para ser mais preciso, no buraco escuro onde havia se jogado cegamente. O que restava era a amarga constatação de que Alice nunca estendeu a mão para ajudá-la a escalar de volta à superfície. Pelo contrário, foi o empurrão definitivo, o golpe cruel que a lançou ainda mais profundamente na escuridão de sua própria queda. A verdade cortante veio em uma única conversa, tão afiada quanto uma lâmina que rasga a alma sem piedade. Cada palavra de Alice pareceu entalhar-se em Lina como ferro quente, tatuando em sua essência uma sentença irrecorrível: “você não merece o meu amor — você nem merece ser amada”.

Aquelas palavras, proferidas com uma frieza que ecoava como um trovão em meio à solidão de Lina, transformaram-se em uma cicatriz invisível, mas profundamente enraizada. O mundo ao redor pareceu desmoronar em silêncio, e a dor era um grito abafado pela quietude do quarto, pelo vazio que se abria à sua frente.

Desta vez, não foi Lina quem se encarou no espelho para despejar aquelas palavras duras e cruéis sobre si mesma. Elas não vieram da sua mente, tão acostumada a autoflagelar-se. Não, desta vez, foi Alice quem as proferiu, em um momento de fúria contida que explodiu como um raio em uma noite sem lua. A presença de Lina, constante e desconfortável como uma sombra indesejada, começara a incomodar Joana de uma maneira insuportável, sufocante. 

Para Alice, a solução era clara: Lina precisava desaparecer, evaporar-se de suas vidas como uma memória que se apaga com o tempo. E Alice sabia exatamente onde atacar. Conhecia cada uma das feridas abertas de Lina, cada vulnerabilidade escondida, cada medo profundo, como um médico que conhece as fraquezas do corpo antes de aplicar o golpe final. Sem hesitar, com uma frieza cirúrgica, ela usou esse conhecimento para jogá-la ainda mais fundo no abismo, sem oferecer um só instante de compaixão. Foi uma queda vertiginosa e implacável, como se Lina estivesse sendo puxada por mãos invisíveis para o interior daquele buraco negro que ela havia tanto temido. Alice, com um único gesto, uma frase cortante, a lançou buraco abaixo, abandonando-a à sua própria dor, sem um pingo de remorso.

A partir daquele dia, Lina foi confrontada com uma verdade inescapável: o processo de autoconhecimento não era mais uma escolha, mas uma necessidade urgente. Seu desejo de reencontrar o sentido de sua existência, de reconstruir-se, exigia que ela se confrontasse com o Real, aquilo que permanecia oculto além da fachada imaginária que criara ao longo de sua vida. Ela mergulhou em terapias, como um primeiro passo para desvelar os nós simbólicos que a aprisionavam. Cada sessão era um encontro com seu próprio inconsciente, onde, sob a orientação do analista, buscava atravessar as armadilhas do espelho, as ilusões que vinham moldando sua percepção de si mesma.

Lina também se reaproximou de atividades que antes lhe traziam prazer, retomando hobbies abandonados, como uma tentativa de reconectar-se com o que havia sido reprimido. Esse retorno aos antigos hábitos não era apenas um resgate do prazer, mas uma tentativa de restaurar o jouissance, um prazer muitas vezes misturado à dor. O contato com amigos e familiares, que antes parecia uma busca por validação externa, agora começou a adquirir uma nova perspectiva: o espelhamento de si nos outros, mas com um novo olhar, mais consciente.

Tudo isso, no entanto, era apenas o início da longa jornada de sua ascensão do abismo psíquico onde se encontrava. A dor ainda estava presente, sim, mas sua natureza começava a mudar. Não era mais aquela dor contínua e sufocante que exigia justificativas externas, que buscava no Outro uma resposta para sua falta. Pouco a pouco, Lina percebeu que sua busca incessante por amor e aceitação fora de si era apenas um reflexo do vazio interno, da falta primordial de amor e aceitação por si mesma. Esse vazio — o que falta no simbólico para completar o ser — não podia ser preenchido pelo Outro. A verdadeira transformação residia no reconhecimento de que o desejo de completude vinha da impossibilidade mesma de alcançar essa completude, e que sua busca externa era, na verdade, uma fuga do confronto com seu próprio desejo.

Lina ainda sentia algo por Alice. Esse sentimento, que antes ardia como uma chama intensa, começou a se desfazer, não em um rompante, mas de forma sutil, como um vento brando que apaga as brasas aos poucos. O amor que um dia fora quase insuportável em sua intensidade, com suas dores e anseios, foi se transformando lentamente em algo mais suave, uma lembrança que deixava de ferir a cada vez que ressurgia na mente. Era como uma cicatriz antiga, que, embora visível, já não doía ao toque. Lina teve que se confrontar com a realidade dura, porém libertadora: nem todas as histórias de amor encontram reciprocidade. Mesmo quando há uma conexão profunda, nem sempre essa ligação é suficiente para transformar o outro em um espelho fiel dos nossos desejos e sentimentos.

Ela compreendeu, com o tempo, que o fato de uma história não ser correspondida da maneira idealizada não a tornava menos real ou significativa. Algumas histórias simplesmente não seguem o roteiro que esperamos, e, ainda assim, deixam marcas profundas, como tatuagens na alma. Por mais doloroso que fosse, até mesmo esse desamor oferecia algo valioso sobre quem ela era, sobre suas próprias profundezas. A marca que Alice deixou, embora imperfeita e difícil de olhar de frente, possuía um valor incontestável. Ela era um lembrete constante das fragilidades, das esperanças despedaçadas, mas também de uma força invisível que Lina começou a perceber em si mesma. Mesmo as cicatrizes feias, que preferimos esconder, têm o poder de revelar quem somos, como traços de uma jornada interna que nos transforma, moldando-nos de maneiras que o amor pleno jamais poderia.

No final das contas, Lina percebeu que o buraco em que caíra, aquele poço profundo e sufocante que por tanto tempo a consumira, não fora tampado, como ela inicialmente imaginara. Ele não havia desaparecido, mas estava agora preenchido com algo novo, algo inesperado e poderoso — um amor próprio que ela jamais havia experimentado antes. Esse amor não surgiu de maneira instantânea, como uma revelação mágica, mas cresceu aos poucos, como uma planta que luta para brotar entre as rachaduras do concreto. Era diferente de qualquer outra forma de afeto que ela buscara desesperadamente nos outros. Não se tratava de validação externa, de espelhar-se no olhar do outro, mas de um reconhecimento silencioso e profundo de sua própria essência, com todas as suas imperfeições e cicatrizes.

Aos poucos, Lina encontrou a escada invisível que sempre estivera ali, mas que, até então, ela não conseguia ver. Cada degrau representava um pequeno avanço, uma conquista interna: o perdão por suas fraquezas, o entendimento de seus limites, e, sobretudo, a aceitação de que ela era suficiente, sem precisar do amor ou da aprovação de Alice ou de qualquer outra pessoa. Ao sair do buraco, não emergiu a mesma Lina que havia caído nele. Ela se sentia reformada em retalhos, como uma folha em branco, que esteve amassada do lado de fora da lixeira, pronta para ser notada, passada e receber novos traços, novos caminhos. Mas, diferente de antes, quando sua vida parecia ser desenhada por mãos alheias ou pela pressão das expectativas, agora o lápis estava firme em suas próprias mãos.

Lina sabia, porém, que a jornada não terminava ali. A vida continuava a ser um emaranhado de incertezas, encontros e desencontros, mas o que mudou foi a maneira como ela se colocava diante desses desafios. A folha em branco que antes a aterrorizava, com suas possibilidades infinitas e a constante ansiedade de fazer a escolha certa, agora a fascinava. Cada desenho que ela traçaria a partir dali seria fruto de sua vontade, de sua autenticidade. Não mais escrava das demandas do Outro, Lina se tornou a autora da própria narrativa, e a linha que desenhava agora, ainda incerta e trêmula, era o símbolo de sua liberdade recém-descoberta.

Assim, ela seguiu em frente, não mais fugindo de suas dores, mas integrando-as como parte da trama que a compunha. Sabia que, como todos os bons artistas, erraria algumas vezes, rasgaria algumas páginas e recomeçaria do zero. Mas, finalmente, aceitara que o valor não estava apenas na obra final, mas no processo de criação. E esse processo, cheio de nuances, cicatrizes e recomeços, estava agora sob seu controle. Cada linha, cada sombra e cada cor seriam traçadas por suas mãos, conforme sua própria vontade, em um universo de possibilidades que só a verdadeira liberdade poderia oferecer.


By,

Mariana Cardoso.

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