Que dia é hoje?

 Escuto a voz da minha mãe ecoando da cozinha, cortando o ar com sua impaciência habitual. Ela sempre grita, como se sua voz pudesse controlar o caos que impera nesta casa. Meus irmãos, sempre agitados, tramam suas trapaças às costas dela, fingindo não serem notados. Mas minha mãe, exausta, prefere não ver. O cansaço a venceu há muito tempo, e às vezes me pego sentindo pena dela. Coitada. Carrega a faina de sustentar uma família enquanto assiste seus sonhos se dissolverem, repetindo o destino de tantas outras mulheres da nossa linhagem.


Eu não. Não aceito esse fardo que elas carregam, esse destino herdado de servir e calar. Não quero, não vou me dobrar às mesmas correntes invisíveis que aprisionaram minha mãe e as outras antes dela. Nem mesmo por você. E menos ainda por teu irmão, que carrega a arrogância de quem acha que o mundo lhe deve algo.


Eu me pergunto, e cada vez com mais frequência: por que nossas mães, visivelmente infelizes, parecem desejar para nós o mesmo infortúnio? Talvez não queiram de fato, mas se renderam a um tipo de cansaço profundo, àquela exaustão que sufoca qualquer vestígio de esperança. Viver como elas, sem escolha, é de fato exaustivo.


Hoje me escondo na copa da árvore mais velha do quintal, como fazia quando era criança. Naquela época, era divertido desaparecer, ouvir os adultos me chamando sem saber onde eu estava. Agora, eu me escondo por necessidade. Não há outro lugar que me faça pensar tão claramente quanto aqui, entre os galhos, com a brisa fria da noite se aproximando. O céu começa a se tingir de laranja e roxo, um aviso de que o dia está morrendo, mas eu continuo aqui, suspensa entre o tempo e o espaço, sem vontade de descer.


Ontem à noite sonhei algo sinistro. Sonhei que estava nua à margem da nascente do rio que passa perto de casa. Era noite, mas o céu, brilhante e estrelado, iluminava o cenário de maneira quase sobrenatural. Eu me aproximei da água calma, meu reflexo me encarando. Quanto mais eu me olhava, mais a imagem no espelho d'água se tornava sombria. Tentei sorrir para meu reflexo, mas ela não sorriu de volta. Ao contrário, com uma voz ríspida, como se fosse a minha própria ecoando das profundezas, ela disse: "O ódio é delicioso por causa de seus padrões destrutivos. É assim que ele vicia, como o ópio."


Acordei com o peito apertado, sufocada. Tive de me arrastar até a cômoda para beber água, tentando aliviar a sensação de estar presa dentro de mim mesma. O sonho ainda me assombra, e talvez seja por isso que estou me demorando mais que o normal aqui hoje. A noite está quase chegando, mas não tenho vontade de descer. Aqui no alto, sinto um tipo de segurança que não encontro lá embaixo, onde os problemas me aguardam, onde tua presença me envenena.


Não quero me viciar no ódio que sinto por você. Ele é corrosivo, lento, um sentimento que invade cada parte de mim. Tudo em você é dor. Tudo em você me lembra sofrimento. Não sei ao certo se algum dia te quis bem. Talvez antes de te conhecer, antes de ver quem você realmente é. Mas agora, conheço cada pedaço de você, e talvez essa seja a pior parte. Ainda assim, me dou conta de uma coisa: você nunca me conheceu de verdade. E talvez essa seja a única coisa em você que eu não odeio.


— Kathy, venha jantar imediatamente ou te deixarei sem comida por uma semana!


O grito da minha mãe corta o ar novamente, desta vez mais desesperado. Sinto uma pontada de culpa por fazê-la sofrer ainda mais. Ela já carrega tanto. Respiro fundo, olho em volta, e por um momento me pergunto onde é pior: dentro de mim ou lá fora, no mundo? Aqui dentro, tudo queima, como um fogo que não consigo apagar. Lá fora, o frio me atinge, como se o mundo estivesse decidido a me congelar. Deve haver algum lugar, algum estado de ser, em que eu não precise nem queimar nem congelar. Um lugar onde eu possa simplesmente existir, sem dor.


Mas talvez esse lugar não exista.


Respiro fundo mais uma vez, e desço. Cada passo é pesado, carregado de ressentimento e raiva. Desço te odiando, desço decidida a me rebelar contra tudo o que me aprisiona. Desço com meus desenhos em mãos, pensando em fugir para longe, para qualquer lugar que me liberte dessa vida. Mas sei que, se fugir, a volta para casa seria ainda mais dolorosa. E a punição por desobedecer, ainda mais severa.


No caminho, quase chegando à porta, vejo teu irmão se aproximando da entrada principal. Um calafrio me percorre a espinha. Merda. Que dia é hoje? Você mencionou que noivaríamos em breve, mas eu não esperava que fosse tão cedo. Merda. Que porra de dia é hoje?


Agora é tarde demais. 

Seja como for, eu não quero. 

Não vou. 

Nem mesmo com você eu aceitaria essa vida. Menos ainda com o estranho do teu irmão.


Cardoso.M.

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