Que dia é hoje?

 Escuto a voz da minha mãe me chamando, lá dentro da cozinha, sempre impaciente. Meus irmãos tramando trapaças a suas costas e ela fingindo não ver, por que cansa, coitada, tenho pena, já não basta os pirralhos agora eu me recusando a ter o destino parecido com o dela e de todas outras mulheres de nossa família.


Não quero. Não vou.

Nem mesmo com você eu o faria. 

Menos ainda com o estranho do teu irmão. 


Eu não entendo por que nossas mães, visivelmente infelizes desejam igual infortuna para nós? Talvez não desejam, mas são vencidas por algum tipo de cansaço. 

É realmente exaustivo.


Antigamente eu me divertia ao me esconder na copa desta árvore enquanto os adultos me chamavam para dentro de casa. Hoje faço por que preciso. Não tenho outro lugar que me faça pensar tão bem quanto aqui. 


Esta noite sonhei algo muito sinistro, me vi nua à margem da nascente do rio perto de casa, era noite, porém o firmamento iluminava. 

Antes de mergulhar me fitei atentamente no reflexo da água calma.


Quanto mais eu me fitava, mais taciturna a imagem ficava, tentei sorrir mas ela não me sorriu de volta e sem aviso me disse, ríspida, como se minha própria voz saísse das águas, que o ódio é delicioso justamente por conta de seus padrões nocivos e é assim que vicia, como ópio. 


Não sei por que mas acordei sufocada com aquele sonho. Tive de me arrastar até a cômoda e tomar uns bons goles d’água.


Acho que por isso que estou me demorando mais do que o normal aqui hoje, por isso que já é quase noite e eu ainda não desci. 


Não quero me viciar no ódio que sinto por você. Tudo em você me lembra dor e sofrimento. Eu não sei nem ao certo dizer se algum dia eu te quis bem, talvez antes de te conhecer. 


Mas eu te conheço há tanto tempo, se bem que, não, não te conheço, a verdade nunca te conheci… nem você a mim, e talvez isso seja a única coisa que eu não odeio em você.

Você não me conhece. 


  • Kathy, venha jantar imediatamente ou te deixarei sem comida por uma semana. 


Grita minha mãe desesperada, novamente. Não pretendo prolongar o sofrimento dessa pobre mulher. 


Olho em volta, saio de dentro de mim, não sei onde é pior, dentro ou fora. Fora faz frio, dentro queima. Deve haver um meio de existir no mundo, estando consciente, é claro, não simplesmente existindo como bois pro abate, no qual não seja preciso queimar ou congelar. 


Mas não há.

Respiro fundo e desço.

Desço te odiando. 

Desço decidida a me rebelar.

Desço com meus desenhos, penso em fugir, em sair correndo, mas seria patética a volta pra casa e a punição pela insubordinação.


No caminho para a entrada da copa, vejo teu irmão se aproximar da entrada principal da casa.


Merda. Que dia é hoje? Tu me disse que noivaríamos em breve. Merda. Que porra de dia é hoje?


Agora já é tarde. 

Seja como for.

Não quero. Não vou.

Nem mesmo com você eu o faria. 

Menos ainda com o estranho do teu irmão. 


Cardoso.M.

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